segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Receita de bolo II

Médico é doido para seguir receita de bolo. Principalmente para aquelas doenças de diagnóstico e tratamento incerto. Portanto, procura se estabelecer critérios diagnósticos minor, medium, major - como se fossem todos os sinais, sintomas e exames laboratoriais que os doentes apresentam, classificados de acordo com sua frequência nos quadros graves. Como o diagnóstico é multifatorial, o tratamento ídem.

Assim, há os famosos guidelines (receita de bolo):
Diagnóstico: 1 critério major e 3 medium, 2 medium e 3 minor, ou ainda 2 major
Tratamento: droga x associada à y por 1 mês. Se o resultado não for satisfatório, acrescenta-se a droga z.
Follow-up, controla-se com exames séricos que verificam a função renal, hepática, RX de tórax e hemograma. À qualquer alteração, suspender a droga x e acrescentar a z.
O critério de melhora? Cruzes! Se a dor era de 4 cruzes em 4, considera-se melhora se passa a 3 cruzes em 4 ou menos.

Agora sim! Fica fáaaaacil! O paciente melhora de 4 cruzes para 3: ueba! Sou foda! Fiz o diagnóstico e estou obtendo resultados! Aí... no segundo mês, volta para 4 cruzes: ué? Como? O protocolo resultou de todo uma metanálise dos trabalhos prospectivos randomizados duplo-cego (medicina baseada em evidências. Eita nome cartesiano!)! Isso quando se resolve parar para pensar um pouquinho... Se não, volta-se para a receita de bolo e se associa a droga z...

Será que ainda estamos no século XVII? Trabalha-se em cima de uma representação, que é a doença. Será que todos os indivíduos manifestam a doença do mesmo modo? Ou, todos sentem a mesma dor? O corpo saudável, incansável, NUNCA apresenta um desvio esporádico? Ou, o coração nunca apresenta uma extrassístole? E o doente? Quanto de variabilidade pode ser considerada "normal"? Os estudos descolam as alterações das particularidades do indivíduo. As doenças, seus diagnósticos e tratamentos, são construídas racionalmente e estatisticamente, pelo médico.

Falta liga. Falta reposicionar o pensamento no doente, talvez. Falta coragem para assumir a responsabilidade pela cura ou não. Pensar passo a passo. Critério por critério. E não se esconder sob os protocolos.
Se o bolo desandou, a responsabilidade é sua por ter escolhido as ferramentas inadequadas, desde a própria receita até à última cerejinha que resolveu colocar no centro.

Um comentário: