http://xicosa.blogfolha.uol.com.br/2014/02/13/carta-ao-raskolnikov-brasileiro/
1. Então vou contar um causo, uma típica briga entre irmãs.
Como de hábito, a irmã caçula encheu o saco da primogênita adolescente que estava quietinha no canto dela. Foi o jeito que a primeira encontrou para chamar a atenção da última, já que ter irmã adolescente é como voltar a ser filha única.
Encheu tanto, mas tanto, que a primogênita se inflou de ódio e avançou como uma tigresa sobre a caçula. As garras marcaram o braço da irmã.
A mãe, como deve ser, correu ao quarto com aquele grito indecente para impedir sei lá o quê. O sangue escorria pela lesão. Fiquei puta pela pele marcada! Passou a destilar todo o verbo para a imoralidade daquela agressão.
Até que vi uma lágrima contida, dolorosa, escorrer pelos olhinhos da minha adolescente cheia de hormônios pululando naquele corpo em definição: "Mãe, vc acha que estou feliz por ver o que eu fiz com ela? Pára de falar! Já deu!"
É... entendemos. Deu merda...
...
2. Vamos para o causo 2, baseado nos fatos dispersos pelos jornais.
Y dirigia muito bem. Era rápido, bom no golpe de vista: passava sem arranhão pelas frestas no trânsito parado E em movimento de SP. Naquele dia foi para uma balada dirigindo - não tinha grana viva para o taxi apesar da curta distância. Bebeu um ou 2 drinques, mas sabe que é forte, difícil ficar bêbado. Ok, mas resolveu esperar até amanhecer para pegar o carro e voltar para casa - era pertinho mesmo...
No meio do caminho, um ciclista em sua direção.
Estava rápido, queria voltar logo para a casa - pertinho - antes que uma blitz o pegasse. Vinha o ciclista, a rua estreitou, mas era bom no golpe de vista e...
Ufa, passou.
Olha pelo retrovisor, nada de ciclista
Um bolo de sangue no banco do passageiro - um braço!!!!!!!!
DEU MERDA!!!!
...
Quando dá merda, não se consegue deixar por isso mesmo. A raiva pela merda instalada quer encontrar um culpado e extravasar-se. Jogam-se pedras meeeeeesmo e crucificam!!!!!
Aí vem:
SE as unhas não estivessem compridas
SE ele fosse uma mão cega no volante
SE não tivesse levado um rojão para a manifestação
e vai além
SE ela engolisse a raiva
SE ele não fosse para a balada
SE ele não fosse à manifestação
...
SE ficássemos trancados na caverna para evitar a merda...
Sabe, de novo tenho receio de entrar na pieguice, mas é verdade. Como em Crime e Castigo. Como na resolução do primeiro causo, presenciado e experienciado:
...
Continuação do 1 causo:
Tanto a mãe quanto a caçula enxergaram aquela dor. A culpa não seria esquecida por conta daquela cicatriz!
Eis que pego as duas, em dado momento, resolvendo naturalmente o problema. A primogênita, artista nata, desenhou uma lindeza com os traços marcados na pele. Uma BAITA lindeza!!!!!!!!
Mãe, quando eu crescer vou fazer essa tatoo! Olha que linda!!!!!!
Bah! O amor, sempre ele. Não aquele amor piegas, que a moral cristã prega. Ou aquele amor de perdição que diz cegar o outro. Trata-se do amor puro, tal qual a intuição pura de Kant. Ou ainda, o amor íntegro, honesto, na justa medida, que vem do espírito, generoso em sua integridade e não no seu dever.
Este amor, que por conta desse estrago nele feito pela linguagem comum agora é necessário ser aprendido, trabalhado, esculpido; transforma sim! Como com Raskolnikov por Sonietchka.
Este amor resultante, que é mais fácil perceber no exercício da maternidade, nos ensina a acolher.
Não há "e se". Há a possibilidade de dar merda, da qual não se pode fugir. Somos humanos soltos na vida, e a característica dela e nossa é a imprevisibilidade. Previsível é só a cadeia de razões explicativas que parecem dar conta do passado e se metem a prever o futuro. Um auto-engano que nos faz nos privar da vida.
Procura-se sempre evitar a merda. Mas ela acontece! Há que se aprender a acolhe-la e nos transformar em seres melhores. E isso, sem pieguisse, só se aprende com o amor digno.
Para os outros, uma cicatriz
Para nós, uma tatoo, linda de doer!
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