"Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração
e quem irá dizer que não existe razão"
R. Russo
Eu me lembro bem daquele dia, como se fosse um filme. Meu primeiro dia de cursinho, de mau-humor por não ter passado no vestibular. Sento na 2 fileira, vazia, não queria ninguém ao meu lado. O coordenador no palco pedindo silêncio. Entra um cara alto, barba cerrada, calça jeans e batinha indiana, estilo bicho-grilo, e senta na minha frente. Gostei! O coordenador do curso, gigante, desembesta a falar... Não tenho a mínima idéia do que era, só me lembro do pensamento voando que repousava sobre aquela imagem insistentemente fixa ao bicho-grilo à minha frente.
De repente, o coordenador do curso chama o coordenador da área de Biológicas. O bicho-grilo-com-cara-de-músico sobe ao palco... Broxei. Tinha que ser professor?
Era tiete das aulas de biologia. Cada palavra dele era proveniente de um mundo que me instigava a cada dia. Cada gesto, um provável sinal. Ele parecia descansar os olhos sobre mim, mas nunca acreditei - quem era eu nisso tudo? Uma pulguinha entre muuuuuitos.
Mas... os dias foram passando... As dúvidas pertinentes foram chegando... O fim das aulas era sempre uma surpresa: de repente, ele sabia meu nome! de repente, nossos olhares realmente se encontraram!
Ele havia feito medicina, falava alemão, e eu ainda nas aulinhas de inglês... Como poderia dar certo? A cada inquietude minha, vinha uma enxurrada de ansiedade pelo mundo de múltiplas possibilidades... E se eu fizesse a escolha errada? Como deixar de escolher todo o resto, muuuuito mais numeroso? Eu sempre achava que tinha muito mais a perder do que a ganhar. E ele, naquela calma "Vc quer abraçar o mundo com o dedo mínimo?" ou "Relaxa... só a morte não tem volta". Eu suspirava fundo. A poeira assentava. Ele fazia do movimento um mundo estável e viável.
E mesmo com tudo diferente veio meio de repente uma vontade de se ver!!!!! Enxergávamo-nos na penumbra e conversávamos no silêncio. Ainda me lembro do sorriso tímido qdo eu chegava, e a luz no olhar que tudo evidenciava. Mas minha razão não se convencia. Ele era muito mais, já não precisava de mais nada. E eu, eu... de tudo precisava. Nem caminho tinha. Como água e óleo.
Como toda relação decente, nos percebemos estranhos e nos libertamos.
Muito tempo se passou. Mas a razão sempre se ressentia: o que nos aproxima da água ou óleo, se não a própria razão? Que maldita confusão nos arma a razão para nos defendermos da vulnerabilidade do espírito? Até que ponto a razão interfere sem se ressentir?
Eis que... conheço-no na penumbra, no som que determina a frequência cardíaca e o silêncio das palavras. Puro espírito. De colisão em colisão, como partículas em alta entropia, arrebatou-me. Nele ex-sisti e in-sisti melhor. Um acolhimento completo na razão ébria.
Trocamos telefone, depois telefonamos e decidimos nos encontrar.. encontramo-nos e conversamos muito mesmo para tentar nos conhecer. Eu já era médica, gostava do Bandeira e de Bauhaus, de Van Gogh e dos Mutantes, do Caetano e de Rimbaud. Ele... "a cada inquietude, uma enxurrada de ansiedade pelo mundo de múltiplas possibilidades... e se fizesse a escolha errada?" Um encanto de músico. Tinha a fome de viver que eu enfim resgatara. Como pude deixar a razão se alastrar a tal ponto de desacreditar na... vida?
Parto para o vão das experimentações. A cada passo, uma desconstrução. A insegurança vem de todos os lados. As incertezas, uma certeza. Como Descartes, firmo meu método, mas desta vez à partir da incerteza e não da dúvida. A dúvida pede uma resposta. A incerteza se encerra em si. Como Montaigne, assumo a infinitude do mundo exposto muito maior que minha inchada razão impertinente. Seria demais presunçoso condenar uma mistura como água e óleo - para que se homogeneizar? É preciso ter coragem para enfrentar a vulnerabilidade do espírito. Ao permitir, a razão se perdoa.
E é justamente esta coragem que ele me traz, pela música que emana do seu Ser...
Não sei até quando. Por isso se torna para sempre.
Beijooooo!!!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário