"Já choramos muito/Muitos se perderam no caminho/ Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer...
Sol de primavera"
Beto Guedes e Ronaldo Bastos
Meus dias continuam ensolarados, experimento o calor do sol com intensidade progressiva... A cada noite, meu espírito anestesiado vaga pelas quebradas cada vez mais sinuosas, e espreita meu corpo que flui... como uma corredeia... atropela outros corpos, gelados e úmidos como o meu. Sacia a sede e a fome daquele instanste escuro.
E passa...
O corpo sente, brilha e, enfim, ofusca a dor da alma. Não há hipófise cartesiana capaz de unir Corpo e Espírito.
Armo minha teia, emaranhado cada vez mais repleto e complexo. Na penumbra, os corpos errantes que vagam sem rumo fascinam-se e seguem embriagados a luminosidade do desafio das minhas curvas - irresistível queda. Desejam meus olhos e nem percebem que não me encontram. São passagem, sou passagem.
Assim chega. Para pernoite. Caixeiro viajante, escuto a voz pausada de quem segura o tempo. Traz-me à terra. Corpo, flúido por hábito, quer vazar, apressar as tarefas antes da aurora. Prova minha umidade e toca em pontos exatos que me permitem jorrar. Neste rítmo pretendo fluir, intensa, desenfreada. Mas finca-me, fundo, em anzol que me prende pelo prazer.
Espírito, sempre à espreita, não resiste ao aconchego da atmosfera que se diverte com as sentenças claras que a natureza nos mostra, e a vala sombria que se forma quando nos propomos a entendê-la. Rende-se. Rendo-me.
Meu corpo guarda teu prazer, e nele o espírito se aconchega. A experiência do pensamento, o aconchego do espírito, o prazer que se conserva no frasco azul celeste.
Escuto e vejo, ainda no escuro, a frequência respiratória que revela teu sono. Já não sei mais o que estimula meus cones e bastonetes e o que por eles salta. Pouco a pouco observo os primeiros sinais da aurora que invadem o quarto. Já não tenho medo. Sinto a consistência, a presença intensa em mim mesma. Não evaporo mais.
Assim aprendo a esculpir pouco a pouco minha alma. Sinto o movimento tímido das janelas do meu peito que enfim se rendem ao sol da primavera...
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