sábado, 26 de setembro de 2009

Sol de primavera


"Já choramos muito/Muitos se perderam no caminho/ Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer...
Sol de primavera"
Beto Guedes e Ronaldo Bastos

Meus dias continuam ensolarados, experimento o calor do sol com intensidade progressiva... A cada noite, meu espírito anestesiado vaga pelas quebradas cada vez mais sinuosas, e espreita meu corpo que flui... como uma corredeia... atropela outros corpos, gelados e úmidos como o meu. Sacia a sede e a fome daquele instanste escuro.

E passa...

O corpo sente, brilha e, enfim, ofusca a dor da alma. Não há hipófise cartesiana capaz de unir Corpo e Espírito.

Armo minha teia, emaranhado cada vez mais repleto e complexo. Na penumbra, os corpos errantes que vagam sem rumo fascinam-se e seguem embriagados a luminosidade do desafio das minhas curvas - irresistível queda. Desejam meus olhos e nem percebem que não me encontram. São passagem, sou passagem.

Assim chega. Para pernoite. Caixeiro viajante, escuto a voz pausada de quem segura o tempo. Traz-me à terra. Corpo, flúido por hábito, quer vazar, apressar as tarefas antes da aurora. Prova minha umidade e toca em pontos exatos que me permitem jorrar. Neste rítmo pretendo fluir, intensa, desenfreada. Mas finca-me, fundo, em anzol que me prende pelo prazer.

Espírito, sempre à espreita, não resiste ao aconchego da atmosfera que se diverte com as sentenças claras que a natureza nos mostra, e a vala sombria que se forma quando nos propomos a entendê-la. Rende-se. Rendo-me.

Meu corpo guarda teu prazer, e nele o espírito se aconchega. A experiência do pensamento, o aconchego do espírito, o prazer que se conserva no frasco azul celeste.

Escuto e vejo, ainda no escuro, a frequência respiratória que revela teu sono. Já não sei mais o que estimula meus cones e bastonetes e o que por eles salta. Pouco a pouco observo os primeiros sinais da aurora que invadem o quarto. Já não tenho medo. Sinto a consistência, a presença intensa em mim mesma. Não evaporo mais.

Assim aprendo a esculpir pouco a pouco minha alma. Sinto o movimento tímido das janelas do meu peito que enfim se rendem ao sol da primavera...

domingo, 20 de setembro de 2009

Aposta

"Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada."
Hilda Hilst
Te sinto tão próximo
e te manténs tão distante
Aconchegante na esperança
e na lembrança que passou
.
Ficas ao sabor do vento
Tempo que me imobiliza
Brisa que esfrega
tua idéia em mim
.
Queria te laçar
e alcançar o desejo
Ou externo-queima
e vai com o vento
Ou interno-queima
e em brasa mantém-se desejo

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Ele não quis dar

Ele não quis dar pra mim
Ele não deu seu beijinho
seu pezinho, seu cuzinho
Também arrenegou do seu cheirinho
seu peitinho, seu pintinho

Meu amor quero deitar do seu lado
Enquanto você fica lambuzado
Do tanto que eu te encabulei

Tiranos

As coisas já não vão bem. Quando a noite se aproxima sei que nem ela consegue ser minha. Preciso dividir meu tempo, preciso abrir minha intimidade. Meu corpo não é mais meu. Respiro fundo. A cada inspiração, inspiro-me no infinito que ainda existe. Meu espírito por ele vaga enquanto empresto meu corpo ao casamento. As funções. O amor construído com tanto carinho. Feito de festas de aniversário, fim de semana no sítio, chegadas com o abraço das crianças gritando e pulando de alegria. Os quadros na parede. Televisão ligada com o barulhinho do Discovery Kids... Geladeira repleta de substâncias escolhidas com esmero e perfeição. Cheirinho de feijão na panela. Tudo para que sempre caminhamos. Telefonemas para ajustes finos da falta ou excesso de ingredientes na família. O dizível. O palpável. O que importa.

Meu espírito vaga por isso tudo, enclausurado, sem poder voar. Ao caminhar pelas ruas, avisto pessoas sem rosto, expiro, flutuo com o vento, penetro nos seus pulmões e consigo sentir o que sentem. Consigo então sentir! Por outros corpos, danço com o “vento que traz a rima de viver sem medo”.

O dia insiste em amanhecer cinzento. Nem chuva, nem raio de sol, espelho da minha alma - já não há mais lágrimas. O sorriso se perdeu em algum lugar do velho leste. Não há dor. Nem ternura. Não há calor. Nem frio. Assim me encontra: pérola como carapaça do mais profundo distúrbio na alma. Mas brilha. Seduz. Intrigada, conduz-me ao seu castelo: sombrio, faltante, enfermo. Mas brilha.

Fecha a porta da sua morada e se dirige a mim. Olhar transviado, puxa-me pelos cabelos, rasga minha roupa e se veste no meu corpo trêmulo...ávido. As amarras se dissolvem na umidade que escorre por minhas pernas, e direciono meus lábios para o que lateja na sua frequência cardíaca. Quero te abocanhar. Te sugar até a última gota. Plasmaferese sanguínea, seu prazer enfim corre por minhas veias. Necessito mais! Cansei dos deveres, das obrigações, das decisões. Cansei de me esconder da dor... Eu quero enfim senti-la, aquela que me liberta da minha tirania. Percebe meu olhar submisso, desejante, e joga-me sobre o sofá. Posiciono as almofadas sob meu ventre e aguardo seus movimentos... Desliza cuidadosamente e estira minhas entranhas, que te apertam e te levam ao céu. Enfim sinto meu espírito. Muuuito prazer. A r r e b a t a d o r!! Prossegue seus movimentos, cada vez mais vigorosos. Agarra meu corpo com força, penetra por todos os meus poros, alcança e arranha a minha alma. Sou sua vagabunda preferida... sou... sua!

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A nhaca

a nhaca
não vira caca
quando sai da casca

corrói a terra
feito minhoca
destrói a artéria
feito placa

mancha o dente
é serpente, peçonhenta
praga lazarenta

vê a luz
vira quimera
quem dera!

sábado, 12 de setembro de 2009

"Cuide de você"

Deixa-me nas nuvens
Sem chão
Um grão de areia
Alheia, solta no vácuo
Sem horizonte...
Flutuo, mergulho, corro,
danço, elástica, livre!

Alguma coisa falta...
Quero me sentir enlaçada,
Atada aos seus braços
Atrelada ao seu caminho
Escrava do seu mundo.
Quero sentir sua presença...

Não me permito
Não se permite

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Estréia (haicai)

Na estréia, temos
Frio na barriga (diarréia!)
Orelha comprida
pro zumzum da platéia

Esperem da Electra... síncope, sexo, sangue e muito fingimento, pois afinal, por uma boa rima vendemos a mãe e leiloamos os amigos hahaha!

"Interruptio"

Como tratar
a alma arranhada?
Com calma,
desespero,
raiva,
remendos...

Irada, velo
Desesperada, nivelo
Farto-me de
aromas cítricos
sabores picantes
cores fortes
corpos...

Falsa ilusão...
É irremediável

Resta-me a calma,
Inspirar a brisa
que o tempo traz,
Rezar pela erosão
do tecido são

Enfim disfarçada,
Escondo-me
da dor

domingo, 6 de setembro de 2009

Fim

Como abafar a dor pelo que passou
Procuro me lembrar do amor
absoluto, sem espaço para
diferenças ou desavenças
Não consigo!

Ficava a promessa
de plenitude eterna
Mas te perdi...
Por tão pouco, por tanto,
Tanto faz

Lacuna impalpável, imensurável
por vezes infinita
confere a via de mão única.
Míopes, só enxergamos as fotografias
de sorrisos coloridos

Traz saudades do que fomos
Anestesia toda a dor acumulada...
Por tão pouco, por tanto,
Tanto faz

Pérola

E quando dor se faz ação
Do negro, luz
Do nu, o luxo
O prazer se anuncia
como a única saída
Partida suave
Escória estéril
Ninguém, nem o mais avisado
se aproxima da cor
Do amor
Da flor e do sabor
Da essência
Frágil
Evanescente
Única
Fugaz

Nocaute

"Quando os sentidos se misturam como os simbolistas clamam, com sons aromáticos e cores quentes, escuto a penugem eriçar-se até a nuca com um zumbido no ouvido... Perco a propriocepção, como em um nocaute. E a sede de sorver até a última gota de todo o tempo da disputa saudável do corpo-a-corpo cadenciado. Tudo em um instante. Aí sim um instante eterno."
Ah, palavras...

Golden Slumbers

São 17:00 e o último paciente aguarda na sala de espera. Dia cheio, muitas histórias, poucas doenças. A arte de cativar, captar a essência da história, selecionar sintomas, esperar pelos sinais e encontrá-los no exame físico. Tudo em 15 minutos. Dá para ficar de mau humor? Que nada! É tudo ótimo! É tudo divertido! O dia de branco está acabando e vou ao supermercado. A D O R O pensar no jantar. Vinho tinto chileno (mais fácil acertar?). Ingredientes especiais que deixam o trivial caprichado. Como se fosse necessário o verdadeiro açafrão obtido pelo pistilo da flor-da-aurora para uma deliciosa Paella, ou então o aceto balsâmico envelhecido por pelo menos 25 anos para enriquecer o sabor de um molho divino, tal e qual sempre pensei. Ah se na juventude eu soubesse qual o verdadeiro tempero da culinária caprichada...

Enfim, chego em casa com os pacotes. Coloco um CD da Marisa Monte para cantar alto sem fim e dar um gás no laboratório alimentar. Panelas ao fogo, preparo e enfeito a mesa da cozinha com uma rosa na garrafinha de vidro (diria que tentei antes o girassol, mas só dava ele no pequeno espaço). Escuto o barulhinho da chave na porta da casa, e o efeito é imediato – como pode ainda ser assim? Poças e mais poças, taquicardia, um super sorriso no rosto.

Pulo no seu corpo e afago seus cabelos. Beijos, vários beijos, por todos os lados. Aí sim reparo no seu olhar – vc sabia que sorri pelos olhos? Um sorriso invertido. Pensando bem, é um pouco difícil encontrar seus lábios com o sorriso real no meio de tantos pelos... Já penso em ataques, mas lá vem vc com essa história de banho... Tudo bem, mas agora dou um tempinho e entro também no chuveiro, empresto-lhe minhas mãos para lavar seu corpo, e aproveito as propriedades da pele ensaboada para deslizar sobre nichos especiais. Sinto a redistribuição sanguínea de nossa circulação, e cuido da freqüência e suavidade dos movimentos, cadenciados com o som e a respiração ofegante..
.
O cheiro que caminha da cozinha desperta para o perigo iminente das panelas ao fogo brando. Infelizmente abandono o ambiente e concluo a tarefa – ou felizmente concluo a tarefa e abandono o ambiente?

Enfim, desfrutamos de um d e l i c i o s o jantar. Não posso acreditar que isso foi possível! Como disse, os ingredientes caprichados estão longe de qualquer prateleira do mais refinado empório. Aliás, apesar da busca permanente, são eles que nos acham.
Aquele fogo no olhar profundo. Um campo magnético que puxa meu corpo ao seu colo e cola meus braços no seu pescoço. E recomeça todo aquele desejo...

Anseio o carinho
O tato das mãos
ásperas e áridas de giz
O olhar profundo de quem exige atenção
A voz rouca ao pé do ouvido
de cordas vocais judiadas
pela demanda do conhecimento

Sinto o calor e a umidade
dos teus lábios
Na minha nuca
Nas minhas costas
E um gemido brota do meu peito

Esfrega-te em mim
E faz-me arder
Ardor úmido e quente...
Cada vez mais quente...

Dos minutos se faz horas
e das horas segundos
Perde-se a noção do tempo
Só se sente o desejo de
querer mais...
Muito mais..

Minha boca percorre teu corpo
Encontra nichos que provocam
Sussuros... gemidos...
Como que em prova,
seus componentes exercem movimentos
Cada qual um ponto
na escala do potenciômetro sonoro
Dilícia!
E quer mais...
Muito mais...

Parte-se para quem,
sempre à espera,
Contempla com a sabedoria de que
no crescente desejo
O melhor está no por vir
Devoro-te dentro de mim
Preenche-me
Farta-me
Deixa um fundinho de
quero mais...
Muito mais...

Morta de prazer
Mantém-se o desejo de plenitude
Caminhamos rumo à avenida
de recém dupla-via
Quando as sensações se confundem
Levam à exaustão
Com tamanha força
que o potenciômetro explode!

Daí as palavras
Ah, palavras
Cuidadosamente arquitetam
o restauro lúdico do potenciômetro...
O jogo cadenciado de troca de
palavras...olhares...sussurros...carícias
que querem mais...
Muito mais...
Sempre mais.

E nessa roda de fogo à exaustão, passamos ao sono sem nos dar conta. Abro meus olhos, viro meu rosto para seu lado, e é você quem encontro! Sinto-me mais em casa do que na minha própria casa. Satisfeita, retorno ao sonho dourado e resisto a todo aquele desejo contínuo. Afinal, o dia seguinte é de trabalho árduo. Ainda árduo? Acordo um pouquinho antes do som do despertador e aí sim me entrego totalmente ao desejo.
E sabe do melhor? Não há mais períodos assombrados. Afinal, não há mais gradiente entre sonho e batalha diária.

sábado, 5 de setembro de 2009

GIZ

Desenho meu contorno
Pinto o dia colorido,
florido, o céu azul...
Escrevo em negrito
as certezas do meu caminho
Sublinho as tarefas
modestas, para não
fazer barulho...

Persistem ao calorzinho do inverno
ao sopro de vento dos dias quentes
Fluorescem com a lua límpida...
Canto cada vez mais alto,
acordo os deuses e
escondo-me com a tempestade

Os desenhos, feitos de giz
são lavados com a chuva
As certezas, escritas com giz
são levadas pela água
Desidratada, atenho-me
às tarefas modestas
com cautela, sem
fazer barulho...


Dia

Toca o despertador e tento me desligar da noite que passou, combustível para o dia planejado desde o meu nascimento. Acordo as crianças e abro a torneira do chuveiro, aquele que lava o giz. Ainda sinto o cheiro da flor de laranjeira, sua imagem me persegue e procuro o som que carrega as ondas da sua presença. Por uns momentos, esta pequena abertura para o inesperado consegue carregar as cores do giz: a bruma sépia da manhã, a copa magenta da árvore na frente da escola das crianças, o fundo negro do trânsito, e o carro repleto de você. Aquela taquicardia, aquele calor que desce úmido, e uma dor no fundo do meu peito, tamanha a escassez sanguínea. Não sei como encontrá-lo, não posso procurá-lo, não devo sair dos trilhos. O meu futuro é certo e a receita da felicidade já tem todos os ingredientes: casa, carro, família completa, emprego fixo com boa colocação, férias, festas, amigos... É só administrar o tempo... Dia após dia... Fim de semana após fim de semana... Feriado após feriado... Natal e Natal – agora na minha mãe? De novo com minha mãe? Qual a última Barbie? Qual o último filme? Princesa? Plebéia? Rainha das Nuvens? Presentes dos professores... secretárias... primos... tios... avós... Quem é meu amigo secreto? De novo? Ou será que não?

O carrossel gira ininterruptamente, sem falhas. Estou flutuando, seguindo direções e sentidos randômicos, completamente perdidos no tempo, mas certa do previsto. Inspiro fundo e preencho meus pulmões de você. Quero contaminar meu cérebro com sua imagem e sentir seu corpo colado no meu. Quero ao menos acolchoar minha balsa. Chego ao trabalho e rogo pela ausência de pausas: um ato após o outro, sem tempo para deliberações. Tenho medo das escolhas e o resultado obscuro não pode alcançar o fim desejado. Escondida nos meus atos extremamente eficientes, afasto-me cada vez mais do que a vida insiste em me oferecer. O dia prossegue. Segundos... minutos... horas... rumo a um infinito que faz uma curva no limite do perceptível. Afinal, tenho tudo para ser feliz. Mas sinto que o sentido da trajetória aponta, progressivamente e sutilmente, para o retorno. A percepção se evidencia pelas lágrimas que, tontas pela gravidade variável, não conseguem escorrer.

A novidade sempre é a escuridão. Nela encontro a desculpa para deixar meu corpo em repouso, enquanto liberto meu pensamento e meus sentidos, agora sim infinitos. Passeio pelos ambientes, pelo espaço e pelo tempo. E procuro vivenciar cada momento da juventude, época em que o brilho dos meus olhos não era reflexo externo, e sim aquele da ansiedade da dúvida e da incerteza do mundo porvir. Da vontade de agarrar cada momento inesperado que a vida oferecia. Parecia uma propriedade do momento e a angústia ficava INSUPORTÁVEL por saber que estava presa no passado. Área proibida! Proibido se pensar no tempo...

A lua se escondeu e não consigo nos encontrar. Que meu pensamento caminhe até você... Posso até sentir o barulho da sua respiração, a caixa torácica se expandindo num corpo tão gelado. Eu quero que meu sangue o aqueça, quero inundá-lo até quase explodir. Sento no seu volume e sinto-o vibrante. Uma saudade de nós... Abraço com ternura e paixão, aquela tão escondida que nem ao luar aparece. Nossas mãos iniciam aquela coreografia perfeitamente sincronizada: harmonia, ritmo, arrepios, zumbidos no ouvido, sussurros, redistribuição sanguínea... um calor embriagante! Muito calor! Suas mãos percorrem minhas pernas e rapidamente chegam à fonte, ávida por contato. Molho seus dedos e estes avançam, explorando minha caverna úmida. Respiro fundo e me concentro sobre cada mínimo movimento seu. Sua habilidade é louvável e, por mais que me segure, as contrações se iniciam... Livro-o do excesso de tecido e sinto você entrando em mim devagarzinho... Os movimentos instintivos para tentar saciar tamanho prazer prosseguem devagar, captando cada estímulo nas regiões hiperexcitáveis. Vem aquele zumbido no ouvido... Contrações de difícil discernimento (de onde exatamente elas vêm?)... O desejo não cede! A mente pede mais. Pede mais luxúria. Pede o extremo prazer. Você sabe de tudo, e se direciona para aquele que quer mais! A sensação animal, violenta do prazer sem limites. Estoura todas as rédeas, as pilastras morais... É a liberdade no seu sentido mais sublime e etéreo... Quero largar meu corpo pelo dia, meu calor não lhe pertence. Meu sangue já não me aquece. Não me pertence. Agora sim sou sua. Vago em você, com você, pleno, infinito. Pra que se pensar no tempo?

Noite

Abro a porta da sala, tateio o interruptor “de prima”. Vislumbro a mesma fotografia: camisa largada sobre o sofá com os mesmos vincos, os livros abertos nas mesmas páginas, dispostos na mesma seqüência. Meu olhar procura um instante de movimento durante minha ausência. Torço para encontrar um papelzinho no chão, carregado pelo vento. Ligo a TV- meus ouvidos procuram estímulo - minhas cordas vocais vibram junto ao som do violão, meu corpo procura o calor, quero mergulhar no seu cheiro de flor de laranjeira. Preciso ver o reflexo do sol. Mas o que fiz da minha vida? O tempo passou tão rápido e volto ao ponto de partida. Não encontro seus sinais. As mesmas pessoas, as mesmas piadas, a mesma 2ª feira que pula para a 4ª feira e vem o fim de semana interminável. E o que será do próximo ano? O mesmo que o ano passado. Procuro as músicas... O ritual de cada estação... Como pode ter as mesmas cores? Uma eternidade de atos contínuos que prometem mudar na linha do horizonte...

Preciso abrir as janelas e sentir a cor das estrelas. Assim como o brilho caminha aos meus olhos, posso por ele nelas chegar. Escuto o som do vento, frente ao movimento de escape tão desesperado... E se, para lá posso chegar num instante, chego também em qualquer janela que se abra para mim. Sei que me espera. Pequena, frágil, com o olhar na lua. Minhas mãos frias e úmidas se aquecem na sua pele macia. Detenho-me nas nuances das curvas, enquanto escuto sons igualmente macios. Aquece-me enquanto meu sangue é atraído para as regiões em que sinto a umidade e seu calor... Meu pensamento, desprovido de nutrientes, flutua e se descola de mim. Enfim! Posso agora limitar-me às sensações. O que resta nos meus giros cerebrais caminha para os órgãos do sentido e carrego então seu cheiro, a tez aveludada, gemidos, e me movimento afinado ao seu prazer. Seu contorno delimitado pelo luar lembra a sombra de quem suguei em troca de um amor infinito que nunca consegui alcançar. A culpa e a tristeza pelo descompasso se escondem então nas aferências das sensações. Procuro sua nuca e sugo enquanto a inundo com minhas dores passadas. Insaciável, inoculo todas as áreas que se oferecem e sinto suas contrações que me espremem à última gota, fluxo em que se esvaem todos os pensamentos que poluem e mascaram minhas decisões. Leve, bem leve, flutuo na onda das luzes das estrelas e me rendo ao dia que chega.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Vampiro


Ele, alto, esguio, traços delicados, fascinante, pouco riso, um certo olhar tristonho de quem não pertence muito a este mundo. Cavaleiro solitário, por vezes se escondia nos pseudópodes de uma mulher. Fagocitado, fagocitava, sorriso-monalisa-íntimo, mas poucas palavras. Alguma coisa, lá no fundo, segurava o riso solto.
Ela, pequena, delicada, formosa, lépida, pensamento e palavras rápidas, canto e riso espontâneo, uma aparente alegria de dia sempre ensolarado. Fugaz... "Fullgás" de fragilidade explosiva. Quem teria coragem de quebrar esse encanto? Dava medo de chegar perto...

O fascínio pelo que não temos sempre nos persegue... Ela uivava para a lua. Ele amava o calor e o aconchego do sol.
Içados pela melodia de sons consonantes, um golpe de vista, míope, velado, marca o eletromagnetismo do olhar... Nunca mais se livrariam deste momento. Para todo o sempre...

Passa-se o tempo, no entraesai de estórias... coloridas... sépia... magenta.... anil... branca... negra... E esbarram-se no meio da rua movimentada de uma cidade grande. A chance? Talvez uma em zilhões. Deixaram passar o primeiro embate, tempos atrás - "a vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida". Imperativo corrigir, frente à nova chance do acaso...

E assim prossegue a história: caminhavam pela Av. Paulista, à noite, torre à vista... Um friozinho e uma brisa... Sentem o toque das mãos e se lembram do sino da faculdade de onde contemplavam as estrelas, tão próximas... o mundo diante da juventude e nem se davam conta, tamanha a ansiedade por ser alguém. Por um momento conseguem se esquecer dos últimos anos, das últimas dores, da sensação de algoz, da sensação de que o amor não basta... As estrelas, escondidas, ficam realmente próximas e iluminam os corpos. Em chamas, com o desejo de levitar e chutar para longe toda a tristeza, submetem a massa encefálica aos caprichos das sensações - arco reflexo simples com uma passadinha pelo sistema límbico... Gosto, tato, audição, olfato... e o olhar... O olhar fantasiado pela leve penumbra da noite estrelada do sino da faculdade. O músculo ciliar ainda permite fixar o brilho dos olhos, e nele se enxergam. Mergulham nesta imagem, tão clara, singela, inocente, pura. Encontram-se no sorriso, também jovem e sem desvios. Assim são e assim estão neste momento: atemporais, sem passado ou futuro, sem mundos ou submundos. A sintonia se apossa do prazer e por ele se movem. Dançam no ritmo da volúpia, ora acelerados, ora devagarzinho, dorso-ventral, ventro-ventral, látero-lateral... Sempre compassados. As torres iluminadas pela noite. E sabem que assim deve ficar. É um estado que pertence à penumbra, só nela esquecem a noção do tempo e só nela se permite a visibilidade do brilho das estrelas. Só assim o brilho pode continuar no olhar, aí sim independente do dia ou da noite, do passado ou do futuro. Mágico.

Passam-se os dias. As estórias paralelas prosseguem, cada qual com sua tonalidade e particularidade de sons e sentidos estimulados ou suprimidos. A magia persiste... Ele persegue o calor e o aconchego do sol. Ela uiva para a lua. Auto-condenado vampiro, ele receia apagá-la... A vontade de sugar seu sangue o consome, mas o que fazer com um ser solar na penumbra? Tão frágil, tão delicada. E ela precisa do brilho noturno da lua e das estrelas. Precisa do escape, já está farta do protetor solar. Está farta da vida de repetições passadas. Precisa de sangue novo: exsanguíneo transfusão, plasmaferese, o diabo. Precisa mudar a cor do sangue - cansou-se do rubro, quer se inundar de sangue branco... Mas sabe da incompatibilidade dos mundos: não pode se livrar do sol e não daria conta de passar protetor solar em mais ninguém.

Mal ele sabe que só um vampiro suportaria a magia atemporal sem mundos ou submundos. Mal ela sabe que só um ser solar que uiva para a lua poderia aquecer um vampiro.

Convite

Avisto o infinito
que a vida me apresenta
Atenta, caminho
à beira do abismo.

Avisto o infinito
que o meu ser acalenta
Esquenta, estiro meu corpo
e me atiro.

Flutuo
Afundo
Elevo-me
Pairo na sublime
brisa do acaso

E te convido
a derrapar nas minhas curvas,
penetrar nas minhas entranhas,
nos perder no obscuro
labirinto do meu ser

Meu sabor
tua seiva
palavras articuladas,
o tempero da vida

Por um triz


Situação branca, branda
Brinquedo de criança
Cansa a rotina,
Neblina, mas tudo bem

Vem a mim, absorvo, me acomodo
De um modo ou de outro sofro
Nada a cada neblina,
Mas tudo bem

Chega nossa hora, chora
Chama-os não adianta
Canta a tua música
Vai, aparece!
Merece a cada momento
O tempo que corre
E a neblina?
Já não tem!

Caos:
Pode-se dizer que Descartes foi o símbolo do pensamento racional ao duvidar da existência de tudo o que nossos órgãos do sentido são capazes de captar, conservar e se pautar pela única certeza possível: o pensamento e toda a “construção racional” de uma estrutura capaz de nortear a vida.
Deste modo, construímos o túnel da nossa existência. A neblina aparece, mas seguimos em frente. E parece ficar tudo bem: um dia depois do outro, trabalho, casa, contas, fim de semana, férias, feriados... e continuamos no túnel seguro que chega em algum lugar. Afinal, o túnel fica cada vez mais confortável: mobiliado, habitado, carro do ano, diplomas na parede, teses de mestrado e doutorado defendidas... Mal se tem consciência a que custo a secularização mantém o túnel armado, único e estável.
Mas as neblinas continuam a aparecer. E começam a perturbar... Aí, meu caro, a percepção por um triz de uma janela aberta, e a observação de um jardim florido, ou o barulho do mar, ou o silêncio absoluto da neve, ou o cheiro de jasmim; começam a desmoronar anos-luz de concreto armado, receitinha de família que sempre deu certo (?). Não se pode dizer que não seja um momento de graça. Um momento em que contemplamos o BEM-platônico através do BELO transparente.

Cosmos:
Apesar de infinito em extensão e em matéria perceptível e imperceptível, cada corpo interage de acordo com sua própria Natureza, e daí advém uma certa Justiça Universal. E para nós, pobres mortais de existência finita? Resta-nos a consciência da própria finitude num mundo infinito. A vida nos oferece e nos mostra o Cosmos: as janelas se abrem e fecham num nanômetro de segundo. Seguimos nossa própria Natureza ao percebermos estes momentos e, diante de uma escolha praticamente aristotélica, mergulharmos ou não. Por um triz. Estamos aqui por um triz. Aí sim cheios de graça. Aí sim generosos.