segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Sede de histórias

Vovô Nono era diferente. Quando o conheci, já percebi. Veio dirigindo seu mercedes branco com a pintura craquelada vintage com a esposa, chegou no sítio onde morava cheeeeio de mantimentos do supermercado. Chapéu branco, calça beige e sapatos brancos. Fiquei assustada - como alguém poderia AINDA gostar de fazer supermercado? Cantando, guardou tudo na dispensa, organizadinha de dar raiva até!

Lépido, aprontava uma refeição com prazer e rapidinho: fazia as massas com farinha e ovos, ravioli de presunto de parma, molho de fungi, coq ao vin, flor de abóbora com muzzarella... strufoli... polentas...
... e um belo vinho!

Sentava-se na cabeceira da mesa da sala de jantar, e papeava. Difícil repetir. Sobre música, ópera, história, estórias... os tempos de menino com a mãe imigrante de pulso firme, os conhecidos que passaram pela quarentena da gripe espanhola, as peripécias com os dois irmãos - o  bom vivant e o primogênito com quem montou uma tecelagem... a constatação sobre o dito popular: pai rico, filho nobre, neto pobre e a saída da indústria antes de perder o irmão com brigas familiares...

E as viagens...

Ele ADORAVA viajar. Todo ano planejava uma. Simples, mas repleta de histórias... Com ele aprendi a fazer malas de viagem - sempre levava uma de couro "vintage" de 40 x 30 x 20 que cabia o necessário: uma calça, necessaire com objetos de uso diário, um pulover... assim que chegava do aeroporto, comprava 2 camisetas, 2 cuecas e 2 pares de meia de algodão que secavam rapidinho. Enquanto lavava um jogo e o esperava secar, usava o outro. Acabou a viagem, deixava tudo no hotel. Para que "vestir" qualquer peso?  Se o interessante é conhecer, vivenciar, para que carregar peso nesta vida?

ADORAVA vinhos. Tinha uma adega no subsolo onde guardava suas preciosidades. Daí a história que ele mais gostava: uma vez, no pomar, sentiu uma dor retroesternal! Aguda! Pensou: "eis que chegou minha hora!" Não teve dúvidas: correu para a adega, abriu aquele Bourdeaux de safra renomada que guardava para uma ocasião especial, bebeu tudo num gole! Não partiria desta vida sem experimentar aquele vinho... Alguns minutos depois, a dor retroesternal materializou-se em forma de gás e deixou seu corpo. Trocou aquela garrafa de vinho por um peido, mas estava tuuuuudo bem - o vinho era realmente soberbo

ADORAVA história e estórias. Ainda me lembro, numa visita a São Paulo, fomos tomar um sorvete na esquina e deparamos com uns meninos de uns 7 anos que nos pediam dinheiro. Coisa chata, queríamos poupá-lo. Preocupação boba: não deu 5 minutos e ele já estava conversando com a molecada: "Qual o seu nome?", "Onde estão seus pais?", "Onde vcs moram?", "Noooossa, mas é longe! Então por que vcs estão aqui tão longe?" quando nos demos conta, ele estava sentado no banquinho, os meninos se divertindo, e nós tbém! E era assim com quem conhecesse. Queria estórias!

ADORAVA livros! Foi ele que me ensinou a ler os russos. Tinha uma estante de uma parede só, os livros não estavam organizados em nenhuma regra comum. Mas ele sabia onde cada um estava. Ao abrir, sempre deparávamos com uma ou outra palavra grifada e o significado anotado ao lado... Não deixava passar nenhum detalhe. Afinal, os detalhes acabam compondo a estória...

Difícil encerrar uma conversa. Quando enviuvou, estava com o semblante sério, mas não deixava de papear. Conversava sobre a doença que a acometeu, sobre o hospital, a cidade onde estavam, e chegava até as manchetes do dia do jornal local.

Diziam que ele era egoísta. Que pouco ligava para as pessoas. De fato, quando o deixávamos, despedia-se de nós rapidinho como se já tivesse passado da hora. Não ficava ligando para a família pedindo visita. Não fazia nada para nos agradar - já era agradável! Era interessante. Interessava-se por tudo.

É isso. Um cara que ADORAVA uma infinidade de coisas. Adorava a vida. Não apenas as pessoas, mas inclusive elas.

Dizia que era muuuito fraquinho pq nunca havia adoecido em 87 anos. Que iria com qualquer gripe. Talvez esta fosse mais uma curiosidade...
Na véspera de Natal, amanheceu ictérico. E deste estado não saiu. Um tumor de pâncreas o levou em menos de 1 ano. Eu me lembro, neste meio tempo, em uma das visitas qdo íamos embora:

"Diga a todos que está tuuuuudo bem!"

E era isso. Já sabia o fim da história. Bela história. E estava tuuuuudo bem!




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