sábado, 18 de dezembro de 2010

verde/vermelho

"... na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, amando-te e respeitando-te por todos os dias da nossa vida"

A felicidade estava estampada no rosto dos recém-casados. Partiram para a fase de brincar de casinha. O espaço era o mesmo de hoje, mas vazio. Esperavam o início do mês e partiam para as casas de decoração, Leroy Merllin, Telhanorte, C&C, atrás de móveis, luminárias, espelhos, louças, roupa de banho, roupa de cama, armários... tintas... cores! Ela amava verde. Ele, vermelho. Para ela, hipermétrope, tudo ficava mais nítido no verde. Para ele, míope, no vermelho era tudo mais brilhante. O contraste era mais nítido nas cores contrastantes.

E isso é fato! A ciência explica.

Mas sempre entravam num acordo. Ela ajustava o foco e curtia as linhas no vermelho. Ele, um homem de visão, desejava enxergar o porvir, e corrigia a miopia - até o verde lhe ficava nítido!
Assim, aquele sofá vermelho que ele escolhera estava ótimo para ela.
E, aquela escultura verde que ela adorava, para ele tinha uns traços interessantes.

E enfim sossegaram! Tinha cara de casa. E era uma delícia esperar pelo fim da jornada de trabalho, nem o trânsito pesava: tinham casa para voltar! O aconchego em quem te espera...

Assim foi qdo transformaram o escritório no quarto de bebê. Que passou a quarto de criança... para quarto de adolescente... para um quarto semi-abandonado... até a um quarto abandonado... e que viraria sala de televisão.

Ela já não conseguia mais ajustar o foco. Mas deu de ombros. Adorava o verde, e bastava ver o mundo no verde. Conseguia ver as novelas, e isso era muito bom! Odiava vermelho, mas tudo bem, não enxergava mesmo o vermelho...

Ele havia tempo que não era mais "um homem de visão". Já estava aposentado, para que se preocupar com o porvir? Já nem mais corrigia a miopia - estava satisfeito com a leitura do jornal - mas bem que poderiam aumentar o caderno do sudoku e palavras cruzadas. Assim, só enxergava a nitidez no vermelho. Odiava o verde, mas nem mais se importava com isso - não passava de um borrão, e só qdo estava num raio de 1 metro de distância. Além disso, o mundo para ele não existia.

A casa agora tinha duas apresentações. Paredes, teto, televisão, cozinha, banheiro... escultura (ahhh, como era linda aquela escultura...). Paredes, teto, som, jornal, cozinha, banheiro... e o sofá do qual Ele não saía!


O filho insistiu tanto, mas tanto, que resolveram procurar o oftalmologista. Poxa, a carteira de motorista estava para vencer e o exame médico prévio já fora complicado! "Ok, ok, pode marcar!"

Ambos com 3 graus! Ela, nas lentes convergentes. Ele, nas lentes divergentes.

Óculos novos, as ruas nunca foram tão bonitas! Olha só as folhinhas da árvore!! E a bula dos remédios - olha só o perigo da medicação que resolvi tomar!!! Voltaram para casa encantados com o mundo que há tempos ficara registrado no álbum de fotografias e nos porta-retratos espalhados pela casa.

Abriram a porta da casa.
Que escultura horrível!
Sofá pavoroso!!!
Cadê a sensação de aconchego de "voltar para casa"? Onde está minha casa? Que casa é essa? De quem é essa casa?

Estáticos, no hall de entrada, assim permaneceram enquanto toda a vida passada se revelou, em cores, numa velocidade e luminosidade de uma epifania. Porém de sensação diversa: a angústia pela vida sem cor. Como puderam se submeter? Que vida desgraçada foi essa? E agora? Quanto tempo se foi? Quanto tempo... me resta?

Em uníssono, sincrônicos nos movimentos, levantaram a mão direita em direção aos óculos... retiraram... guardaram cuidadosamente no estojinho...

Ela foi para a salinha de televisão.

Ele pegou o jornal e se sentou no sofá.

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