Estou com overdose de gente. Natal é tempo de encontrar quem há muito tempo não encontramos. Tios, primos, amigos, aqueles que em algum lugar da vida tiveram muito a ver conosco e que, de algum modo, são estranhos. Ou até, de identidade imposta.
Vejo os rostos tão familiares... tento resgatar alguma coisa que se perdeu, mas não encontro mais.
O discurso sem discurso. Os fatos sem a menor importância. Contam o que aconteceu no ano que se passou. Os fatos. O que se conquistou. O que se perdeu. As anedotas - dos outros. Mas... e o que mais?
O que se passa ao seu redor?
De que vale o último prêmio que conquistou? Passou...
De que vale o carro que comprou? Bateu...
Ou o anel de zilhões de dólares que ganhou do marido? Se seu amor está agora passando o natal com a esposa grávida...
Se o espírito de natal, talvez, for pretexto para reencontrar quem amamos, por que fazemos tanta questão de deles nos distanciar?
Um oi sincero, olhos nos olhos, olhos de quem baixa a guarda e expõe toda a alma, e olhos atentos de quem quer acolher isento de qualquer preconceito. O que te fez saltar do tempo corrido e visitar toda a infinidade do mundo - o que te fez, em um instante, devastar seu passado, acolher o futuro e, de soslaio, varrer o tempo da humanidade? Ou, o que te roubou aquela lágrima no canto dos olhos?
O que te perturba? Ou, por que não mais perturba?
Ou será
que a aflição do Natal vem justamente pq tudo isso pode ganhar a superfície? E o que faremos com o sobrenadante? Não dá mais para afundar...
Tudo bem. Passa. Vem o carnaval, e tudo fica como antes, até voltar toda essa ansiedade que simula o fim do mundo.
..e que começa com as primeiras luzinhas clandestinas nas ruas escuras.
Pascal: "Les hommes sont si nécessairement fous que ce serait être fou par un autre tour de folie de n’être pas fou’. (...) Il faut faire l’histoire de cet autre tour de folie, de cet autre tour par lequel les hommes, dans le geste de raison souveraine qui enferme leur voisin, communiquent et se reconnaissent à travers le langage sans merci de la nonfolie...”
domingo, 26 de dezembro de 2010
sábado, 18 de dezembro de 2010
verde/vermelho
"... na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, amando-te e respeitando-te por todos os dias da nossa vida"
A felicidade estava estampada no rosto dos recém-casados. Partiram para a fase de brincar de casinha. O espaço era o mesmo de hoje, mas vazio. Esperavam o início do mês e partiam para as casas de decoração, Leroy Merllin, Telhanorte, C&C, atrás de móveis, luminárias, espelhos, louças, roupa de banho, roupa de cama, armários... tintas... cores! Ela amava verde. Ele, vermelho. Para ela, hipermétrope, tudo ficava mais nítido no verde. Para ele, míope, no vermelho era tudo mais brilhante. O contraste era mais nítido nas cores contrastantes.
E isso é fato! A ciência explica.
Mas sempre entravam num acordo. Ela ajustava o foco e curtia as linhas no vermelho. Ele, um homem de visão, desejava enxergar o porvir, e corrigia a miopia - até o verde lhe ficava nítido!
Assim, aquele sofá vermelho que ele escolhera estava ótimo para ela.
E, aquela escultura verde que ela adorava, para ele tinha uns traços interessantes.
E enfim sossegaram! Tinha cara de casa. E era uma delícia esperar pelo fim da jornada de trabalho, nem o trânsito pesava: tinham casa para voltar! O aconchego em quem te espera...
Assim foi qdo transformaram o escritório no quarto de bebê. Que passou a quarto de criança... para quarto de adolescente... para um quarto semi-abandonado... até a um quarto abandonado... e que viraria sala de televisão.
Ela já não conseguia mais ajustar o foco. Mas deu de ombros. Adorava o verde, e bastava ver o mundo no verde. Conseguia ver as novelas, e isso era muito bom! Odiava vermelho, mas tudo bem, não enxergava mesmo o vermelho...
Ele havia tempo que não era mais "um homem de visão". Já estava aposentado, para que se preocupar com o porvir? Já nem mais corrigia a miopia - estava satisfeito com a leitura do jornal - mas bem que poderiam aumentar o caderno do sudoku e palavras cruzadas. Assim, só enxergava a nitidez no vermelho. Odiava o verde, mas nem mais se importava com isso - não passava de um borrão, e só qdo estava num raio de 1 metro de distância. Além disso, o mundo para ele não existia.
A casa agora tinha duas apresentações. Paredes, teto, televisão, cozinha, banheiro... escultura (ahhh, como era linda aquela escultura...). Paredes, teto, som, jornal, cozinha, banheiro... e o sofá do qual Ele não saía!
O filho insistiu tanto, mas tanto, que resolveram procurar o oftalmologista. Poxa, a carteira de motorista estava para vencer e o exame médico prévio já fora complicado! "Ok, ok, pode marcar!"
Ambos com 3 graus! Ela, nas lentes convergentes. Ele, nas lentes divergentes.
Óculos novos, as ruas nunca foram tão bonitas! Olha só as folhinhas da árvore!! E a bula dos remédios - olha só o perigo da medicação que resolvi tomar!!! Voltaram para casa encantados com o mundo que há tempos ficara registrado no álbum de fotografias e nos porta-retratos espalhados pela casa.
Abriram a porta da casa.
Que escultura horrível!
Sofá pavoroso!!!
Cadê a sensação de aconchego de "voltar para casa"? Onde está minha casa? Que casa é essa? De quem é essa casa?
Estáticos, no hall de entrada, assim permaneceram enquanto toda a vida passada se revelou, em cores, numa velocidade e luminosidade de uma epifania. Porém de sensação diversa: a angústia pela vida sem cor. Como puderam se submeter? Que vida desgraçada foi essa? E agora? Quanto tempo se foi? Quanto tempo... me resta?
Em uníssono, sincrônicos nos movimentos, levantaram a mão direita em direção aos óculos... retiraram... guardaram cuidadosamente no estojinho...
Ela foi para a salinha de televisão.
Ele pegou o jornal e se sentou no sofá.
A felicidade estava estampada no rosto dos recém-casados. Partiram para a fase de brincar de casinha. O espaço era o mesmo de hoje, mas vazio. Esperavam o início do mês e partiam para as casas de decoração, Leroy Merllin, Telhanorte, C&C, atrás de móveis, luminárias, espelhos, louças, roupa de banho, roupa de cama, armários... tintas... cores! Ela amava verde. Ele, vermelho. Para ela, hipermétrope, tudo ficava mais nítido no verde. Para ele, míope, no vermelho era tudo mais brilhante. O contraste era mais nítido nas cores contrastantes.
E isso é fato! A ciência explica.
Mas sempre entravam num acordo. Ela ajustava o foco e curtia as linhas no vermelho. Ele, um homem de visão, desejava enxergar o porvir, e corrigia a miopia - até o verde lhe ficava nítido!
Assim, aquele sofá vermelho que ele escolhera estava ótimo para ela.
E, aquela escultura verde que ela adorava, para ele tinha uns traços interessantes.
E enfim sossegaram! Tinha cara de casa. E era uma delícia esperar pelo fim da jornada de trabalho, nem o trânsito pesava: tinham casa para voltar! O aconchego em quem te espera...
Assim foi qdo transformaram o escritório no quarto de bebê. Que passou a quarto de criança... para quarto de adolescente... para um quarto semi-abandonado... até a um quarto abandonado... e que viraria sala de televisão.
Ela já não conseguia mais ajustar o foco. Mas deu de ombros. Adorava o verde, e bastava ver o mundo no verde. Conseguia ver as novelas, e isso era muito bom! Odiava vermelho, mas tudo bem, não enxergava mesmo o vermelho...
Ele havia tempo que não era mais "um homem de visão". Já estava aposentado, para que se preocupar com o porvir? Já nem mais corrigia a miopia - estava satisfeito com a leitura do jornal - mas bem que poderiam aumentar o caderno do sudoku e palavras cruzadas. Assim, só enxergava a nitidez no vermelho. Odiava o verde, mas nem mais se importava com isso - não passava de um borrão, e só qdo estava num raio de 1 metro de distância. Além disso, o mundo para ele não existia.
A casa agora tinha duas apresentações. Paredes, teto, televisão, cozinha, banheiro... escultura (ahhh, como era linda aquela escultura...). Paredes, teto, som, jornal, cozinha, banheiro... e o sofá do qual Ele não saía!
O filho insistiu tanto, mas tanto, que resolveram procurar o oftalmologista. Poxa, a carteira de motorista estava para vencer e o exame médico prévio já fora complicado! "Ok, ok, pode marcar!"
Ambos com 3 graus! Ela, nas lentes convergentes. Ele, nas lentes divergentes.
Óculos novos, as ruas nunca foram tão bonitas! Olha só as folhinhas da árvore!! E a bula dos remédios - olha só o perigo da medicação que resolvi tomar!!! Voltaram para casa encantados com o mundo que há tempos ficara registrado no álbum de fotografias e nos porta-retratos espalhados pela casa.
Abriram a porta da casa.
Que escultura horrível!
Sofá pavoroso!!!
Cadê a sensação de aconchego de "voltar para casa"? Onde está minha casa? Que casa é essa? De quem é essa casa?
Estáticos, no hall de entrada, assim permaneceram enquanto toda a vida passada se revelou, em cores, numa velocidade e luminosidade de uma epifania. Porém de sensação diversa: a angústia pela vida sem cor. Como puderam se submeter? Que vida desgraçada foi essa? E agora? Quanto tempo se foi? Quanto tempo... me resta?
Em uníssono, sincrônicos nos movimentos, levantaram a mão direita em direção aos óculos... retiraram... guardaram cuidadosamente no estojinho...
Ela foi para a salinha de televisão.
Ele pegou o jornal e se sentou no sofá.
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Entre o céu e a terra
Estávamos voltando da praia, pela serra do mar, dia maravilhoso e nós no carro...
A quietude mostrava bem o clima de fim de festa, acentuado pelo convite que a natureza insiste em nos oferecer.
As crianças aceitam pelo hábito. Mas o pensamento fica loooongeeee...
Olhando pela janelinha para a orla do mar, Lulu, então com 6 anos, pergunta:
- A praia tem fim?
Já imaginei a cena que ela estava imaginando. Estava na fase de encanto pelo universo, pelos planetas, estrelas.. começava a passear além do mundo sublunar de Aristóteles.
- Imagine um prato em cima da mesa. Agora, o continente é o prato e a mesa é o mar. Se caminharmos na bordinha do prato (a praia), nunca vamos parar. Não tem fim. Mas por outro lado, onde termina o prato? É onde começa a mesa. Então tem fim!
Adoro os caminhos do pensamento, os saltos, a ponte entre vias paralelas que acaba aproximando-nas de um modo inusitado. As crianças são filósofas por natureza. A vida utilitária que nos foi imposta é que mascara e corta todo esse encanto.
Vem a Gabi, 9 anos
- Mas do que vcs estão falando? Vcs estão loucas? A praia termina onde começam as pedras, oras!
Rimos.
Muito.
Como não nos curvar à praticidade, à ação, ao visível, ao real...
... ao útil?
A quietude mostrava bem o clima de fim de festa, acentuado pelo convite que a natureza insiste em nos oferecer.
As crianças aceitam pelo hábito. Mas o pensamento fica loooongeeee...
Olhando pela janelinha para a orla do mar, Lulu, então com 6 anos, pergunta:
- A praia tem fim?
Já imaginei a cena que ela estava imaginando. Estava na fase de encanto pelo universo, pelos planetas, estrelas.. começava a passear além do mundo sublunar de Aristóteles.
- Imagine um prato em cima da mesa. Agora, o continente é o prato e a mesa é o mar. Se caminharmos na bordinha do prato (a praia), nunca vamos parar. Não tem fim. Mas por outro lado, onde termina o prato? É onde começa a mesa. Então tem fim!
Adoro os caminhos do pensamento, os saltos, a ponte entre vias paralelas que acaba aproximando-nas de um modo inusitado. As crianças são filósofas por natureza. A vida utilitária que nos foi imposta é que mascara e corta todo esse encanto.
Vem a Gabi, 9 anos
- Mas do que vcs estão falando? Vcs estão loucas? A praia termina onde começam as pedras, oras!
Rimos.
Muito.
Como não nos curvar à praticidade, à ação, ao visível, ao real...
... ao útil?
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